Opinião - Vácuo de poder x fundamentalismo de mercado
Recorrentemente, há artigos na imprensa enfatizando que temos, no Brasil atual, um vácuo de poder. É difícil aceitar esse ponto de vista, pois há múltiplas manifestações do poder político federal que sinalizam o oposto. Eu destacaria:
- os recentes debates ocorridos no Congresso e o resultado das votações, onde sistematicamente predomina o ponto-de- vista do Governo Federal; -o encarceramento de inúmeras personalidades de oposição ao Governo, cuja culpa ou responsabilidade em atos tidos como ilícitos não são maiores do que as que poderiam ser atribuídas a membros do poder instalado; bons exemplos são Marcelo Odebrecht, José Dirceu e o Almirante Othon;
- o desmantelamento do setor nacional da engenharia civil e militar, sem maiores protestos por parte dos setores majoritários da sociedade, sobretudo do meio empresarial;
- a nomeação de dois quadros políticos para o Ministério de Relações Exteriores, em detrimento dos quadros do Itamaraty, com a agravante que se tratou, até agora, de políticos suspeitos de envolvimento em atos que poderiam ser considerados ilícitos, embora ainda não denunciados;
- a utilização de força policial e militar contra situações de agitação por parte de movimentos sociais ou sindicais, sem maiores manifestações por parte das organizações e entidades de defesa dos direitos humanos e da ordem democrática;
- entre maio e setembro de 2016, no espaço de quatro meses, o governo federal editou 19 medidas provisórias, média mensal de quase cinco MPs, sem que nenhuma delas tenha sido derrubada pelo Congresso (cf. Agência Senado, setembro de 2016); até esta data (março de 2017) já foram lançadas em torno de 30 medidas provisórias pelo governo federal (de números 726 a 755), em espaço inferior a um ano, média mensal em torno de 3 MPs desde o afastamento da presidente eleita em outubro de 2014;
- não se poderia deixar de citar o recuo aparente da taxa Selic de 14,15 para 12,25% (queda de 1,9 ponto), enquanto a inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) ou pelo Índice Geral de Preços-Disponibilidade Interna (IGP-DI) recuou na mesma proporção (o IGP-DI anual medido pela Fundação Getúlio Vargas – FGV passou de 7,18% para 5,26%, queda de 1,92 ponto); comparando-se os dois índices, verifica-se que a taxa real de juros, Selic, permanece em torno de 7% anuais, sem redução portanto em valores reais.
Há também, até agora, nítida deterioração dos dados relativos à economia brasileira. São indicadores: aumento do desemprego, dívida pública bruta superior a 70% do Produto Interno Bruto (PIB), ampliação do déficit público primário e nominal, deterioração da situação econômica das famílias, com perda de poder aquisitivo em torno de 10% no último triênio, fechamento de empresas, desnacionalização progressiva.
Apesar da deterioração verificada, não há manifestação pública das entidades sindicais patronais e de trabalhadores contra a política econômica adotada pelo governo instalado a partir de maio de 2016. Salvo honrosas exceções, caso da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq).
Também inexiste um programa alternativo de política econômica por parte das frágeis oposições.
Tampouco se conhece, da parte do governo, um programa claro, objetivo, sinalizando uma estratégia de retomada do crescimento. Apenas promessas, vagas, como as expectativas em torno dos efeitos das reformas em curso, de cunho neoliberal e apontando para o “fundamentalismo de mercado”.
Fundamentalismo de mercado que, em momento algum de nossa história, foi capaz de promover o desenvolvimento econômico e social. Menos capaz ainda de encaminhar políticas de redução das desigualdades sociais, aspiração histórica do povo brasileiro.
Entre as manifestações de poder desse fundamentalismo de mercado, pode-se apontar a manutenção da taxa de juros Selic, em nível de 7% reais. Com a atual divida pública bruta, a taxa Selic deverá absorver cerca de 5% do PIB, pouco mais de R$ 300 bilhões, neste ano de 2017, apenas para rolar a dívida, isto é, pagar os juros anuais.
São recursos improdutivos, estes destinados à rolagem da dívida pública, tão somente para saciar o apetite voraz dos rentistas, nacionais e internacionais. Constituem no nosso entender o indicador mais adequado, e forte, para sinalizar que não há vácuo algum de poder. Há um poder central forte, capaz de impor um sacrifício desse porte a uma população majoritariamente pobre e incapaz de fazer frente às necessidades materiais do cotidiano de uma família.
Um poder que tende para o despotismo e para a adoção de medidas que contribuirão para o empobrecimento dos brasileiros e, é provável, para o retorno de populações miseráveis vagando tristemente em busca de sobrevivência.
Diante das considerações acima, parece-nos impossivel falar em vácuo de poder no Brasil atual.
Ceci Juruá, economista, doutora em políticas públicas e membro do Conselho Consultivo da Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados (CNTU)
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Opinião - O mel e o fel
Da cultura religiosa oriental chega-nos uma parábola. Ela nos conta sobre um homem perseguido por uma fera selvagem e assediado também por um bando voraz de aves de rapina e ameaçado de morte por uma serpente venenosa, que tropeça e cai em um despenhadeiro. Agarra-se como pode a um ramo de árvore onde existe uma colmeia de abelhas que podem picá-lo dolorosamente. O homem se refaz da correria e dos sustos, estica a mão e prova o mel do favo. Ele é doce.
A parábola é, como se vê, otimista – apesar das dificuldades há, no final, uma recompensa.
Mas, infelizmente, uma parábola pertinente à situação atual do nosso movimento, agredido por muitos adversários e inimigos, trocaria o mel, que o acossado alcança, por fel, que é amargo. A nossa situação é, digamos sinceramente, pavorosa.
Vejamos. Na esfera do Judiciário as agressões são muitas e têm eliminado a validade dos acordos e convenções (a ultratividade dos contratos) ao mesmo tempo em que se postula o negociado valendo mais que o legislado, tudo isso em conjunto com a limitação das verbas sindicais negociadas. O presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), inimigo da própria Justiça do Trabalho, encontra eco e respaldo em votos monocráticos de juízes do STF.
O Executivo tem proposto reformas lesivas aos trabalhadores e ao movimento sindical. Elas são propagandeadas como necessárias ao rearranjo da máquina pública e compõem uma atordoante sinfonia que começa com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos gastos (já aprovada) e passa pelas reformas previdenciária e trabalhista. Não há refresco.
Como se não bastassem essas duas feras, prepara-se um bote venenoso na Câmara Federal, com a votação e aprovação de uma lei da terceirização que é muito mais lesiva aos interesses dos trabalhadores do que aquela que já havia sido aprovada (em tumultuadas votações comandadas ainda por Eduardo Cunha) na própria Câmara e aguardava votação no Senado. A manobra do atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) precipitando essa votação que é do agrado dos empresários e do governo, mesmo que não tenha êxito durante a semana, permanece como uma espada sobre a garganta do movimento e com um desfecho apenas adiado.
E tudo isso acontece em um quadro de recessão profunda, com o desemprego infelicitando, no mínimo, 50 milhões de brasileiros e cujos efeitos são desorganizadores da própria luta sindical.
Voltando à parábola: é preciso muita unidade, muito otimismo da vontade, muito aguerrimento e muita coordenação inteligente para enfrentar a situação e, pelo menos, não trocar o mel pelo fel, nem ser picado pelas abelhas nem por esvoaçantes moscas azuis.
Dia 15 de março neles!
João Guilherme Vargas Netto é analista político e consultor sindical
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Opinião - Meia gravidez não produz cria
Enquanto o exemplar de fevereiro da revista da FGV, Conjuntura Econômica, afirma que a PEC 287/2016 aproxima a Previdência brasileira dos modelos dos demais países, a edição de segunda-feira, 20/02 da Folha de São Paulo, escancara que a “reforma é mais rígida que de países ricos”, destacando que o tempo mínimo de contribuição de 25 anos para a aposentadoria proposta pelo governo supera a média da OCDE (mesmo universo comparativo da revista da FGV, embora ela desabusadamente fale em “demais países”).
Está em curso uma batalha de informação sobre o alcance da reforma e sobre sua rigidez.
Assim como Aristides Lobo que, ao descrever o golpe da proclamação da República, dizia que “o povo assistiu aquilo bestializado”, a massa da população trabalhadora brasileira está assistindo, também bestializada, a este debate.
Por desconhecimento da maldade pretendida ainda não se deu conta do arrocho atual e do arrocho futuro. Os mais interessados em resistir ao esbulho (os pobres, as mulheres, os jovens, os funcionários públicos) estão apreensivos, apáticos, desinformados e as direções sindicais não têm conseguido ainda esclarecer as coisas e mobilizar os trabalhadores, embora tentem cumprir uma agenda para isso.
Um dos sintomas dessa desorientação das direções, que prejudica a compreensão da base e sua resistência, é o fato de que estão (as direções) mais preocupadas em discutir já alternativas no quadro proposto das reformas do governo do que suscitar o sonoro grito de “nenhum direito a menos”.
Tenho insistido nesta constatação: sem um rotundo não às reformas não há possibilidade de se evitar o pior da reforma, aplaudida pelo mercado, defendida pelos formadores de opinião e propagandeada maciçamente.
Concentrar a discussão agora em pretensas alternativas embota o gume da resistência, desorienta a compreensão de milhões de trabalhadores e piora as condições reais de uma futura negociação no Congresso, a cargo dos partidos políticos.
Todo aparato de comunicação das grandes entidades sindicais deveria concentrar-se em denunciar os aspectos lesivos da reforma, enfatizar os que são piores e suas consequências mais negativas, porque qualquer simulacro de negociação antecipada e apressada carrega em si a aceitação de uma meia gravidez que produz cria.
* João Guilherme Vargas Netto é analista político e consultor sindical
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Mobilização por conteúdo local
Interrompendo o debate que vinha acontecendo com representantes da engenharia e do setor produtivo, o governo definiu em 22 de fevereiro último as regras para conteúdo local mínimo exigido para as empresas que participarem dos próximos leilões para exploração de gás e petróleo. Estabelecendo uma redução média de 50% nos diversos itens, na prática, o comitê interministerial responsável pela medida pode ter excluído a indústria nacional dos futuros empreendimentos. Isso principalmente porque, ao fixar padrão global de 25% para meios flutuantes (plataformas e navios de apoio), permite às petroleiras cumprirem a norma sem comprar qualquer máquina ou equipamento nacional, lançando mão apenas de serviços com baixo valor agregado e sem tecnologia.
Tal decisão prejudica o País no curto prazo, pois deve provocar dezenas de milhares de demissões no setor industrial, que se verá sem a importante demanda da área de petróleo. Nossa estimativa é que nessa dizimação da área técnica, percam-se cerca de 5 mil engenheiros dos mais qualificados. Ou seja, agrava-se o desemprego num momento em que esse já atinge 13 milhões de trabalhadores no Brasil.
Porém, ainda pior é o potencial que essa determinação, tomada sem levar em conta os alertas feitos pela engenharia brasileira, tem de prejudicar os nossos anseios de desenvolvimento nacional. Afortunado por possuir reservas importantes de petróleo, o Brasil teve a competência também de desenvolver tecnologia de ponta para explorar essa riqueza. Mas não podemos ser simplesmente exportadores de óleo bruto para que outros países usufruam a riqueza que o setor pode gerar. Devemos aproveitar essa oportunidade para o nosso desenvolvimento tecnológico e industrial, para gerar empregos de qualidade e boas condições de vida a nossa população.
Ou seja, mais que lamentar tal encaminhamento por parte do governo brasileiro, precisamos nos mobilizar para reverter essa decisão. A Engenharia Unida, mobilização dos profissionais da área tecnológica e das inúmeras entidades que os representam, nasceu como alternativa para contribuir na busca de saídas à crise que assola o Brasil. No momento, um foco dessa ação é certamente a defesa da indústria nacional e do papel que pode ter no importantíssimo setor de petróleo e gás.
Ainda, é preciso preservar a Petrobras como fundamental empresa brasileira com capacidade de fazer e induzir investimentos de relevância para criar movimentos positivos na economia. E, por fim, é necessário que as grandes empresas nacionais voltem a atuar e a empregar. É preciso que a punição por crimes cometidos recaia sobre os responsáveis, não sobre o conjunto da sociedade brasileira.
Murilo Pinheiro é presidente da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE) e da CNTU
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Obrigado, Darcy
Neste 17 de fevereiro completam-se 20 anos da morte de Darcy Ribeiro. Se as principais nações do mundo honram seus heróis com memoriais, filmes, nomes de ruas e festas cívicas, o mínimo que podemos fazer para ele é, como Emicida já nos ensinou, dizer de peito aberto: "Obrigado, Darcy!".
Darcy Ribeiro cresceu no interior de Minas Gerais e estudou na Escola de Sociologia e Política em São Paulo. Foi "etnologar" índios no Xingu e cometeu o pecado de perceber que eles não eram somente fósseis do passado mas um presente e -se tivéssemos sabedoria- um futuro civilizacional.
Mergulhou na reforma da educação brasileira, engajou-se na alteração estrutural do país por meio da ação política, foi exilado, escreveu uma obra teórica de impressionante fôlego sobre desenvolvimento mundial e o papel do Brasil (a "teoria de nós mesmos que só nós poderemos fazer", encarnada nos diversos volumes dos "Estudos de Antropologia da Civilização").
Tornou-se escritor de romances de alta qualidade e um agitador cultural de primeira grandeza. Amou os brasileiros brancos, índios, negros, misturados de todos os jeitos e para todos os gostos.
Circulou com marechal Rondon, Anísio Teixeira, Victor Nunes Leal, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Leonel Brizola, San Tiago Dantas, Celso Furtado, Glauber Rocha, Salvador Allende, Pablo Neruda, Fidel Castro, Che Guevara, Chico Buarque, Caetano Veloso, entre inúmeros outros.
Foi homenageado por algumas das principais universidades do mundo, tema de teses e documentários. Deu origem a uma fundação. Inspirou várias iniciativas nos mais diversos campos, impactando positivamente a vida de milhares de brasileiros.
A ação e o pensamento de Darcy alertaram-nos para nossas tarefas como nação a fim de construir, nessa primeira metade do século 21, uma verdadeira civilização nos trópicos: a defesa da mestiçagem; a altivez na determinação de objetivos próprios para a cultura, a economia e a política (e não acreditarmos que os modelos culturais, econômicos e políticos de que precisamos estão em uma prateleira, à venda, em alguma empresa ou universidade do hemisfério Norte); a democratização do poder político, do poder econômico, do conhecimento e dos grandes meios de comunicação de massa.
Se fosse possível reduzir tal complexidade e riqueza a duas palavras, diria que Darcy foi amor e serviço. Amor ao Brasil, à ideia do país generoso com os brasileiros, autônomo perante o imperialismo e o sistema financeiro e responsável com seus recursos naturais e humanos.
Amor é atenção; Darcy nos deu ininterruptamente atenção. Serviu ao outro, incansavelmente: produziu teoria para a emancipação; trabalhou para construir escolas decentes onde nossas crianças seriam educadas e alimentadas; lutou para garantir liberdades democráticas; sorriu para os compatriotas e os fez sorrir; ensinou a abrir uma fresta entre a realidade e a utopia que alimenta a luta diária.
No Brasil de hoje, Darcy não é só saudade: é necessidade. Podemos ser todos Darcy. Obrigado, Darcy!
Alessandro Octaviani, professor de direito econômico da Faculdade de Direito da USP, é autor do livro "Estudos, Pareceres e Votos de Direito Econômico", entre outros. Artigo publicado, originalmente, na seção "Tendências & Debates", do jornal Folha de S.Paulo, no dia 17/02/17.
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