Opinião - Erudição pertinente
Uma das ideias fortes da imensa contribuição de Antonio Gramsci para o pensamento progressista da humanidade é a contraposição que ele fez entre “pessimismo dell’intelligenza, otimismo dell’volontá”, recorrente em todos os seus escritos.
Fundador e dirigente do Partido Comunista italiano, organizador das ocupações de fábrica na década dos anos 20, teórico, publicista e deputado, Gramsci foi condenado em 1928 pelo regime fascista de Musolini a 20 anos, quatro meses e cinco dias de prisão. Submetido a um severo regime penitenciário teve sua saúde aniquilada e morreu em 27 de abril de 1937 sem pedir clemência ao regime.
Um dos seus carrascos e juízes havia declarado que a prisão deveria “impedir esse cérebro de pensar”. Mas Gramsci superou esta interdição e deixou registrados seus Cadernos do Cárcere e suas cartas, monumentos reconhecidos da literatura política italiana, publicados em livros por seu colega Palmiro Togliatti e magistralmente e completamente reeditados em 1975 por Valentino Gerratana.
A contraposição que Gamsci faz do pessimismo da inteligência com o otimismo da vontade é muito pertinente hoje, quando o movimento sindical e toda a sociedade enfrentam tempos difíceis, que exigem a dupla postura. Ainda mais porque, segundo Gamsci, o puro otimismo é, em geral, “um modo de defender a própria preguiça, a própria irresponsabilidade, a vontade de não fazer nada” (quase o mesmo se poderia dizer também do pessimismo puro).
A erudita edição Gerratana rastreia a gênese da fórmula de Gramsci, remetendo-a a um texto antigo de Jakob Burckhardt que caracterizava nos gregos o “Pessimismus der Weltanschauung und Ottimismus des Temperaments” (visão do mundo pessimista e temperamento otimista) e às formulações de Romain Rolland.
Mas Gramsci fez mais que repetir uma fórmula; ele conseguiu, com seu sacrifício, fazê-la viva.
Que nos sirva de exemplo e inspiração.
Joao artigo 11FEV2016
João Guilherme Vargas Netto é analista político e consultor sindical
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Ampliação do conflito distributivo
O governo federal, por intermédio da Emenda à Constituição nº 95/2016, congelou o gasto público, em termos reais, por 20 anos, independentemente de haver ou não aumento de receitas e crescimento do PIB. É proibido gastar além do orçamento executado no ano anterior, corrigido pelo IPCA – Índice Nacional de Preço ao Consumidor Ampliado.
Com isso, sempre que a despesa ultrapassar o limite global haverá cortes em rubricas específicas, como pessoal, previdência, assistência social, entre outras. A única rubrica imune a cortes será a de pagamento de juros e amortização das dívidas internas e externas, exatamente porque a economia a ser feita com os cortes será integralmente destinada a ela.
Para dar consequência ou efetividade à E.C. 95, além do gatilho automático de corte de direitos e vantagens dos servidores, o governo propôs uma ampla reforma da Previdência e da assistência social, com regras draconianas de acesso a benefícios pagos com recursos da seguridade social e do orçamento fiscal.
Ao limitar o crescimento do gasto, frente às crescentes necessidades de serviços públicos e de programas sociais, haverá um forte aumento do conflito distributivo. Como a disputa por recursos do orçamento sempre favorece os setores mais organizados ou com mais interlocução com o governo, já se sabe quem irá arcar com os prejuízos.
Ora, como a alocação de recursos no orçamento congelado fica a cargo do governo e dos parlamentares, sem qualquer participação popular, o governo já escolheu o assalariado, o aposentado e o pensionista, cuja fonte de renda tem natureza alimentar, como a variável de ajuste. Ou seja, as perdas e prejuízos recairão sobre a parte mais fraca econômica, social e politicamente na relação com o governo e o mercado: os assalariados e dependentes de programas sociais.
Nos próximos 20 anos, portanto, se não for revogada a E.C. 95, os assalariados e aqueles que dependem de prestações ou de serviços do Estado serão os principais prejudicados, porque terão direitos cortados ou reduzidos e haverá piora na quantidade e na qualidade dos serviços públicos, como a saúde, a educação, a segurança etc.
As políticas públicas dependem da orientação governamental. O próprio ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em artigo no jornal O Globo de 5/2/2016, reconheceu, com conhecimento de causa, que “adotar políticas que favoreçam mais ao capital do que ao trabalho, ou vice-versa, depende da orientação política do governo”. E a orientação do governo Temer é clara em favor do capital.
A opção preferencial do governo pelo rentismo – detentores de títulos públicos – além dos assalariados, também prejudicará o setor produtivo, cujos incentivos fiscais e creditícios poderão sofrer cortes, naturalmente após a redução ou eliminação do que ainda resta de Estado de Bem-Estar Social.
Todos estamos de acordo sobre a necessidade e até urgência de saneamento das contas públicas, inclusive para manter sustentável a função social do Estado, mas os sacrifícios devem ser distribuídos para todos e de modo proporcional à capacidade contributiva de cada um. Fazer do modo como está sendo feito, escolhendo quem vive de salário, de aposentadoria e de pensão ou que depende de políticas públicas e de programas governamentais para arcar com os cortes, é uma atitude, além de injusta, perversa.
A população precisa ser consultada sobre o conteúdo do ajuste. Se for, como tudo indica, atendendo apenas o desejo e a pauta do mercado e do rentismo, os eleitores serão implacáveis em 2018 com os governantes e parlamentares que aprovarem essa agenda de reformas em bases neoliberais.
Os parlamentares que irão votar essas reformas, especialmente a trabalhista e a previdenciária, cujo objetivo central é cortar ou reduzir direitos, precisam ser alertados de que não dispõem mais de financiamento empresarial de campanha para comprar votos, e se votarem contra os interesses dos eleitores não terão qualquer chance de reeleição em 2018. Ou os potenciais prejudicados com essas reformas saem da zona de conforto e pressionam seus representantes, ou o retrocesso, com a transferência do orçamento dos mais pobres para os mais ricos, será inevitável.
Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista político e diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap)
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Opinião - Daniel, lá e aqui
A tela escura do cinema dá destaque para a ligação telefônica de Daniel para a Agência de Seguridade, procurando resolver o entrave que o impede de acessar o benefício pelo afastamento do trabalho por motivo de saúde. Começa o incomodo filme sobre os entraves que impedem que os trabalhadores europeus tenham acesso aos benefícios assistenciais definidos nas políticas públicas de seguridade social.
A luta de Daniel revela as perversidades das engrenagens voltadas para excluir e impedir o acesso a direitos duramente conquistados. A onda neoliberal, que varre o mundo e ocupa governos, atua para reduzir o tamanho do Estado, com todos os tipos de reforma, grandes e pequenas, e, no cotidiano, cria regras e opera procedimentos voltados para a exclusão dos trabalhadores e dos pobres.
No mundo multiplicam-se iniciativas para a redução dos gastos sociais dos Estados, através de reformas dos sistemas previdenciários, de saúde, assistenciais, entre outros, reduzindo o escopo do direito, alterando os critérios de acesso e transferindo o serviço público para o mercado. Saúde, educação, assistência etc. viraram mercadoria para gerar lucro. Os ricos estão ganhando essa batalha, fazendo regredir o tamanho do Estado e a universalidade das políticas sociais, criando novos negócios e conquistando o direito de pagar muito menos impostos. A turma do andar de baixo que se vire como mercadoria desempregada.
Aqui a saga dos trabalhadores brasileiros começou com a aprovação da mudança constitucional que impõe severos limites ao crescimento do gasto público, regra que valerá para os próximos 20 anos e que promoverá substantiva redução do tamanho do Estado brasileiro.
Agora, a luta continua para enfrentar o projeto governamental de reforma do Sistema de Seguridade Social, que promove profundas regressões ao estatuto definido na Constituição de 1988. As novas regras, propostas no Projeto em pauta no Congresso Nacional, alteram profundamente a substância dos direitos previdenciários e assistenciais, coloca travas para o acesso aos benefícios, retarda e impede o acesso ao direito.
Os trabalhadores procuram, em cada contexto, criar movimentos que mobilizem as pessoas para enfrentar esses desmontes. Afinal, foi com mobilização e luta que se construiu, especialmente no pós-guerra (1945), Estados de bem estar social nos quais os direitos coletivos e universais passaram a ser financiados por impostos progressivos.
Preservar e promover os direitos são lutas cotidianas. Com grave problema de saúde, Daniel é afastado do trabalho pelos médicos. Começa sua luta para ter acesso aos direitos do sistema de seguridade social. Cada lance do filme vai revelando as engrenagens do sistema público, talvez terceirizadas, operando para impedi-lo de acessar seus direitos. Katie cruza o caminho de Daniel, mãe solteira que luta para dar condição digna de vida para seus dois filhos. A dignidade de ambos vai sendo minada e eles lutam.
O ótimo diretor Ken Loach denuncia no filme “Eu, Daniel Blake”, de maneira contundente, a difícil condição de vida atual dos trabalhadores europeus, e de que maneira o Estado os impede de acessar direitos. O filme trata de um caso que é universal porque expressa o cotidiano de milhões que vivem situações opressivas, que muitas vezes são humilhados e destruídos.
Há muitas lutas travadas, solitárias e silenciosas, nas quais Blake e Katie recolocam a centralidade da essência humana: a relação com o outro. As necessidades, as urgências, as contradições se misturam a projetos e sonhos, todos presentes nas relações que se estabelece com os outros e através das quais nos tornamos únicos e universais, até no fim. As lutas de cada um ganham a dinâmica de movimentos e de encontros capazes de promover, com o outro, breves e frágeis encantamentos com o sentido de Justiça.
Clemente Ganz Lúcio é sociólogo e diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese)
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Opinião - Mobilização e negociação
Tenho afirmado que qualquer negociação séria no Congresso Nacional sobre as reformas previdenciária e trabalhista e sobre a terceirização somente produzirá resultados menos negativos se o conjunto dos trabalhadores, mobilizados pelas direções sindicais unidas, der uma tal demonstração de força que a palavra de ordem “nenhum direito a menos” se escreva com letras escarlates no imaginário nacional, portanto, também no imaginário dos parlamentares.
Além das lições históricas e da corriqueira prática sindical sobre a dialética existente entre mobilização e negociação, a afirmação acima se baseia na atual correlação de forças e na dinâmica ideológica vigentes no Congresso Nacional.
O governo Temer tem tido forte maioria congressual nas duas casas desde o impedimento da presidente Dilma. O chicote ideológico, brandido pelo mercado e pelos fazedores de opinião, empurra as duas casas na trilha das reformas duras, mesmo que, aqui e acolá, alguns deputados e senadores da base governista percebam o grau exacerbado das maldades pretendidas.
As recentes eleições das mesas da Câmara e do Senado comprovaram duas coisas: a hegemonia inconteste da orientação neoliberal (que na Câmara levou até a uma violação regimental de peso) e o esgarçamento das orientações partidárias em detrimento dos apetites grupistas e individuais dos parlamentares (quase todos os cargos importantes das respectivas mesas diretoras, exceto as presidências, foram eleitos contra as direções partidárias). O baixo clero e os baixos instintos se assanham, como foi comprovado no grotesco episódio da sabatina na boate-chalana senatorial.
Neste quadro e neste clima cresce a necessidade do recado forte das ruas para que os ouvidos atarantados e moucos se desentupam um pouco.
Exatamente por isso, o movimento sindical deve dar prioridade agora às mobilizações de sua base, compatibilizando as agendas que devem se somar, o que reforçará o peso unitário do “nenhum direito a menos” e o peso das direções nas negociações congressuais futuras.
*João Guilherme Vargas Netto é analista político e consultor sindical
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Opinião - Costeando o alambrado
No linguajar de Brizola a expressão acima, derivada das lides vaqueiras das estâncias, queria dizer vacilação ou traição iminente.
Não é este o caso do importante seminário organizado pelo Dieese e ouvindo destacados especialistas que reúne, durante dois dias, as centrais sindicais para discutirem as pretendidas reformas previdenciárias do governo.
Não é o caso porque as centrais, em seu esforço unitário de ação comum, já decretaram a palavra de ordem “Nenhum direito a menos”, que orientará os debates.
Não é o caso porque os especialistas convidados deverão explicitar, com dados e argumentações, o caráter negativo e contrário aos interesses dos trabalhadores da reforma.
Não é o caso porque, na agenda de eventos previstos pelas centrais, confederações, federações e sindicatos, já estão convocadas mobilizações, manifestações e protestos, como a grande manifestação no Congresso Nacional no dia 22 de fevereiro.
Trata-se, como é de se esperar das direções conscientes, de um esforço para “arrumar a cabeça” e melhorar nossa capacidade de comunicação com a base, bem como de “afinar a viola” nos duetos congressuais com deputados e senadores. Não é já a negociação em si, que depende, para seu maior êxito, da mobilização maciça dos trabalhadores agredidos hoje e no futuro.
Por seu lado, o governo e seus aliados também se organizam na Câmara, com a presidência da comissão especial entregue a um deputado que não teme o desprestigio e o desgaste porque foi expoente couraçado da tropa de choque de Eduardo Cunha e um relator já “experimentado” quando das discussões e votações da terceirização. O governo conta também com o beneplácito ativo dos empresários e da mídia que procuram criar clima favorável à reforma, aterrorizando a população.
Está engajada uma prova de força e de inteligência. De seu desfecho dependerá, e muito, a futura relevância social do movimento sindical dos trabalhadores.
João Guilherme Vargas Netto é analista político e consultor sindical
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