Nutricionistas têm muitas possibilidades de atuação, diz profissional
Em entrevista, Maria Sylvia Carvalho conta que uma decisão tomada no Ensino Médio, que a obrigou a escolher um curso técnico em Nutrição e Dietética (TND), acabou decidindo por sua profissão.
Mais tarde, a escolha fortuita serevelou a mais que acertada.“Quando fui prestar vestibular, escolhi a Nutrição. Não me arrependi!”, garante ela. Maria Sylvia Carvalho de Barros é Nutricionista, tem Especialização em Saúde Pública e Mestrado e Doutorado em Alimentos e Nutrição. Durante 21 anos foi responsável pelo Restaurante Universitário da UFSCar e, atualmente, é professora universitária de várias disciplinas, dentre elas Controle de Qualidade e Legislação de Alimentos.
Leia a entrevista:
Por que você quis se tornar Nutricionista?
Fiz parte de uma geração que foi obrigada a fazer curso técnico quando estava no ensino médio. Uma das poucas opções que minha escola oferecia era o TND(Técnico em Nutrição e Dietética). Tive meu primeiro contato com a Nutrição nesse momento. Depois, quando fui prestar vestibular, escolhi a nutrição porque me possibilitava juntar atividades assistenciais sociais (que foi o resultado de um teste vocacional que fiz)com a saúde. Não me arrependi!
Sempre quis trabalhar na área da educação? Como aconteceu sua inserção nesse setor?
Pode parecer incrível, mas nunca pensei nisso e não persegui esse objetivo. Saí da faculdade querendo ir para o mercado de trabalho e fuiatuar, em Belo Horizonte,com execução de políticas públicas (trabalhei na FAE –Fundação de Assistência ao Estudante do MEC, que antes do FNDE era quem cuidava da Alimentação Escolar no país). Fiz parte da equipe que avaliou a municipalização do PNAE, no final da décadade 1980. Nesse momento, senti falta de investir na minhaformação e fui fazer o curso de Especialização em Saúde Pública, da Escola de Saúde de Minas Geraisem parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz.Mais tarde, já de volta ao Estado de São Paulo e atuando no Restaurante Universitário da UFSCar, novamente senti falta de continuar a formação e fui fazer o Mestrado (e depois o Doutorado) em Alimentos e Nutrição, na Faculdade de Ciências Farmacêuticas daUNESP, em Araraquara. Quando terminei o Mestrado, fui convidada, por uma colega, para dar aulas em umCurso de Graduação em Nutrição. Aí descobri que adorava fazer aquilo, estar em contato com os alunos, preparar e dar aulas. Me encontrei na sala de aula!Nunca mais parei.
Além da experiência como docente, você tem sólida experiência como Nutricionista responsável pelo Restaurante da UFSCar. Conte-nos sobre esse desafio.
Olha, foi mesmo um desafio. Saí da faculdade pretendendo nunca trabalhar em uma UAN(Unidade de Alimentação e Nutrição). Mas,no início da década de 1990, a instituição em que eu trabalhava estava para ser extinta e me transferi para a UFSCar, onde fui designada para o Restaurante Universitário. Em Minas Gerais eu já havia organizado e colocado para funcionar uma Unidade pequena, para atendimento de cerca de 80funcionários e alguns eventoscom, no máximo 200 pessoas.Cheguei no RU da UFSCar eeram servidas mais de 2000 refeições por dia (ao longo do tempo que trabalhei lá, chegamos a quase 5000). Tudo era gigante! No início só pensava em comoe quando poderia ir para outro departamento! Mas a Universidade não tinha Curso de Nutrição, minha carreira era técnica e nãodocente e percebi que ia ficar no RU até me aposentar. Resolvi encarar a tarefa e tratei de recuperar o que aprendi na faculdade e de buscar mais informações, referências, cursos e o que fosse necessário para construir competência na área. Fiquei lá por 21 anos, trabalhei muito, acompanhei e participei do crescimento, ampliaçãoe otimização dos serviços prestados, da implantação de outros RUs nos demais campida UFSCar(Sorocaba e Lagoa do Sino), tive que encontrar soluções e buscar melhorias para problemas de compra de alimentos por processos de licitação, contratação de mão de obra terceirizada, informatização do sistema de acesso aos refeitórios, demandar, discutir e aprovar obras de reforma e ampliação de estrutura física, implantação de RU em campusnovo, instalado em fazenda localizada em regiãosem maiores recursos, entre outras coisas. Mas acho que construí competência para atuar na área e isso contribuiu muito para que eume tornasse uma docente com mais experiência de vida profissional para poder transmitir aos meus alunos.
Quais as necessidades dos alunos de Nutrição atualmente?
Quando os alunos chegam à Graduação, sinto queé preciso desconstruir alguns “conhecimentos” que eles acham que têm (pela ampla divulgação, nem sempre confiável, de temas relacionados à alimentação e nutrição que vemos hoje na mídia e nas redes sociais),para começar a falar de conteúdos com base em evidências científicas. Aliás, acho que essa é a maior dificuldade que os próprios alunos relatam: a de encontrar, compreender e saber utilizar esse tipo de conteúdo na prática profissional.São muitas informações desencontradas, truncadas, com caráter de divulgação comercial. E da forma como são divulgadas, chegam a levar alguns alunos a questionar de forma incisiva os docentes em sala de aula – dizendo que estão desatualizados. Também acho que é precisoque a gente reforce a posição de que, de modo geral, com pacientes,clientes e com a população,precisamos falar mais de alimentação e bem menos de nutrientes e suplementos (importantes para nossas decisões técnicas, masque confundem os leigos ao tomarem decisões de consumo). Acho que os nutricionistas precisam ocupar a mídia e as redes sociaiscom conteúdo sobre alimentação saudável em seus diferentes componentes (emocional, afetivo, cultural, além do nutricional) e sempre com base em evidências de qualidade, para que se perceba a dimensão da área e as possibilidades de atuação profissional.
Estudantes e recém-formados estão cientes das múltiplas formas de atuação?
Com relação à atuação profissional, acho que seria importante os estudantes e os profissionais recém-formados terem mais contato com histórias de profissionais de sucesso de diferentes áreas. A visão que muitos têm vem da mídia e das redes sociais e eles desconhecem profissionais atuantes e fundamentais em diferentes segmentos do mercado de trabalho. Hoje vemos alguns alunos que chegam ao Curso de Nutrição decididos a “atuar na área de esportes”, como eles dizem. Na verdade, percebo que para muitos, isso significa o desejo de atuar com emagrecimento e modificação da composição corporale não de colaborar, efetivamente,com a preparação de atletas. Alguns chegam e já são ou estão tentando se firmar como influenciadores digitais. Seguem perfis de celebridades (nutricionistas, médicos ou leigos) que postam conteúdo nessa área e consideram que o sucesso profissional se mede pelo número de seguidores na internet. Quando a gente fala sobre todas as possibilidades de atuação profissional dos Nutricionistas, muitos se surpreendem. Poucos pensam na atuação na área clínica que extrapole a questão do emagrecimento, seja com relação às tantas patologias que necessitam de alteração dietética,seja na promoção de alimentação saudável. Falar em atuar de forma não prescritiva, então,parece quecausa um curto-circuito na mente demuitos deles. Quase nenhum fala em atuar em Políticas Públicas na área de Alimentação e Nutrição (A&N) ou de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Isso muda um pouco ao longo do curso e, especialmente, durante osestágios, quando descobrem que há muitas outras possibilidades. Entretanto, muitos enfrentam dilemas em relação ao mercado de trabalho, ao valor do piso salarial e às possibilidades de ganhos financeiros suficientes e justos, atuando de maneira ética e com base em evidências. Fica a percepção de que os que se destacam(e ganham mais dinheiro), na verdade, são os que constantemente ferem o Código de Ética e Conduta. Isso é muito ruim para a categoria profissional. Acho que é preciso valorizar mais o profissional em suas diversas áreas de atuação, trabalhar pelo aumento do valor do piso salarial e divulgar as diferentes opções que o mercado de trabalho oferecee contar a história de profissionais de sucesso, para que estudantes e profissionais enxerguem a carreira como realmente atrativa.
Recentemente, você participou delive promovida pelo SindiNutri-SP onde foi abordada a nova legislação sobre doação de alimentos. Qual o impacto dessalei sobre a atuação dos Nutricionistas?
Acho que o momento é propício para a gente refletir e debater mais a respeito de muitas questões importantes: (a) a exclusão social que enfrentamos e a existência de parcela importante da população em situação de Insegurança Alimentar e Nutricional, que não têm respeitado seu direito a uma alimentação adequada e saudável; (b) a importância dasolidariedade, fundamental em tempos de crise, como o que estamos vivendo, mas que não pode se restringirà distribuição de sobras de alimentos e de refeições; (c) a necessidade de redução do desperdício de alimentos em todas as etapas da cadeia produtiva e de comercialização; e (d)aimportância e a necessidade de políticas públicas soberanas e efetivaspara a garantia do direito constitucional à alimentação. Cabe aos nutricionistas refletirem sobre tudo isso e sobre seu papel nesse contexto. Lembrando que o que a nova legislação traz de novo é só a questão de se deixar de considerar as doações como relações de consumo e, portanto, eximir de responsabilidade criminal, conforme previsto no Código de Defesa do Consumidor, aqueleque doar alimento que cause algum dano a quem consumir, desde que não haja dolo.Isso é positivo porque muitos não doavam exatamente pelo receio de que, após a doação, os alimentos e preparaçõesdoadas não fossem transportadas, conservadas e consumidas de acordo com as boas práticas, prejudicando a saúdedos assistidos. Acontece que toda a legislação sanitária não foi alterada e essa questão permanece, mesmo sem possibilidade de responsabilizaçãocriminal. Então, o nutricionista precisa se engajar nessas reflexões e discussões, na busca de soluções práticas e seguras para, nesse momento de crise, possibilitar doações solidárias que atendam os que estão desamparados.Isso pode ocorrerno âmbito de sua própria atuação em UAN sou restaurantes comerciais, incorporando os controles e o acompanhamento das doaçõesàs suas rotinas, mas também pode ser como assessor/consultorno âmbito de associações de comerciantes e empresários, grupos atuantes na assistência social, conselhos municipais e outros que se disponham a coordenar e intermediar iniciativas de arrecadação e distribuição de alimentos e refeições. Mas também precisa pensar para além desse momento de crise, em que é preciso garantir a alimentação em caráter emergenciale passar a participar mais das instâncias que podem influenciar a discussão, a criação ea implementação de políticas públicas que foquem na redução do desperdício, no consumo consciente, no reforço aos circuitos curtos de produção e comercialização de
alimentos, nas escolhas por alimentos de produção sustentável e justa.É preciso, enfim, que o profissional esteja inserido na construção mais crítica de um padrão de atuação mais solidária e com responsabilidade técnica e social.
Qual o maior desafio para oobjetivo dessa lei se concretizar, ou seja, aumentar a doação de alimentos em plena pandemia?
Acho que o maior desafio é criar e manter uma estrutura local (e não tem como não ser local)que favoreça a identificação de potenciais doadores de diferentes tipos de alimentos e, principalmente,de refeições, que é omais complicado. Issopela própria definição sobre o momento da decisão de destinar as refeições prontas à doação,em que tipo de embalagem, as condições de tempo/temperatura quedefinirãose estão próprias ou nãoaté o momento do consumo, como recolher edestinarde formasegura. Não vejo como, individualmente, UANseestabelecimentos comerciais poderão fazer isso com segurança,sem o apoio e a intermediação de uma rede que cadastre doadores e receptores potenciais e que coordene as doações. A doação de alimentos in naturae processados já conta com o a experiência e a tecnologia desenvolvida por Bancos de Alimentos e pelo Programa Mesa Brasil, cujos profissionais podem contribuir bastante para a construção dessa nova rede.
Para o exercício profissional, é muito importante a atenção às normas elegislação vigentes. Os Nutricionistas têm papel ativo nessa regulamentação?
Acho que falta os próprios nutricionistas perceberem o quanto podem colaborar para essa construção. Os espaços de participação social, embora tenham sido reduzidos nos últimos anos, existem e precisam ser ocupados por nutricionistas.Conselhos e comissõespara definição de normas e ações em diferentes níveis de governo, consultas públicas realizadas pelos responsáveis pela legislação, como por exemplo a ANVISA e o próprio legislativo, ações para pressionarvereadores, deputados e senadores quanto à importância de certas pautas e na defesa de determinadas posições. Tudo isso faz parte da atuação política cidadã. Muitos ainda enxergam esse tipo de atuação como “militância política” e rejeitam porque a percebem comopolítico-partidária (com todo o peso que isso tem num paíscomo o Brasil, hoje). Acho que temos, nos cursos de graduação e em todas as oportunidades, trabalhar a formação profissional cidadã. Um bom profissional tem que ser um bom cidadão –não só respeitar e agir de forma ética, mas cobrar e contribuir para uma sociedade mais ética, solidária, responsável, inclusiva, sem preconceitos. Seremos mais valorizados quanto mais percebermos, respeitarmos e colaborarmos com os espaços de representação e fiscalização profissional (Sindicatos, Conselhos de Categoria, Associações), quanto mais espaços ocuparmos, quanto mais nos posicionarmos e atuarmos em defesa do que é importante para a saúde e a cidadania.
O nosso objetivo com essa entrevista é abordar a sua trajetória e também contribuir para a valorização da categoria. Caso tenha algo a dizer para que esse objetivo seja cumprido, fique à vontade.
Acho que precisamos discutir mais e divulgar a atuação e aimportância do Sindicato, assim como das outras entidades da categoria. Vejo, entre profissionais e estudantes, uma confusão muito grande sobreo papel dos Sindicatos e dos Conselhos Regionais e uma percepção bastante limitadasobre as conquistas que já tivemos ou pelas quais ainda precisamos lutar.Enquantoa categoria não perceber a importância da participação e dessas instâncias de representaçãoe fiscalização do exercício da profissão, acho que vamos ter dificuldades de avançar.
Fonte: ConversaNutri - SindiNutri