Trabalhadores e invisíveis passando fome antes e depois da pandemia de Covid-19
Carlos Magno Corrêa DiasConselheiro da CNTU levanta debate em artigo: após a pandemia, os mais vulneráveis e novos vulneráveis ainda sofrerão com a falta do que comer e serão ainda invisíveis aos governos? Confira.
No mundo, antes da pandemia de Covid-19, cerca de 1 bilhão de pessoas passavam fome frequentemente todos os dias quando se produzia quantidade suficiente de comida para alimentar com sobras toda população; a cada 4 segundos uma ser humano morria de fome; mais de 1,5 bilhão de indivíduos não possuíam acesso à água potável; uma criança morria de fome a cada cinco segundos; quase a metade da população mundial (próximo a 4 bilhões de pessoas) ainda vivia abaixo da linha de pobreza e sofria muito para satisfazer suas necessidades básicas diárias como, por exemplo, comer todos os dias.
Certamente, era um absurdo uma pessoa morrer de fome em pleno século 21 com todos os avanços tecnológicos e desenvolvimentos existentes. Mas, depois da Covid-19, aconteça o que acontecer, continuará sendo absurdo (inaceitável) seres humanos continuarem a morrer de fome ou morrerem por não terem condições básicas para sobreviver.
Estranhamente, a despeito do quadro observado precedentemente, atualmente o mundo vem experimentando uma abundante solidariedade quando pessoas ou empresas se organizam para ajudar os novos necessitados vítimas diretas ou indiretas das dificuldades instaladas devido à pandemia de Covid-19. Vê-se uma mobilização sensacional onde aqueles que podem estão a ajudar os mais prejudicados.
Todavia, não há como deixar de pontuar, os invisíveis flagelados, ou mesmo muitos trabalhadores informais com baixíssimos rendimentos, que passavam fome ou morriam em decorrência de péssimas condições básicas para viver, já existiam antes que a pandemia de Covid-19 se instalasse e pouco ou quase nada foi realizado para ajudá-los.
Passada a crise da Covid-19, muito provavelmente, nada mudará para aqueles miseráveis que engrossarão os exércitos dos destinados a morrer pela desnutrição, pela falta de alimentos (pela fome), pela alimentação inadequada, por doenças simples, pela falta de água, pela falta de saneamento básico, ou que continuarão a morrer, silenciosamente, todos os dias, por causas das mais distintas, causas estas, certamente, em muitas das vezes, evitáveis.
Em tempos de pandemia de Covid-19 tem-se escutado que a doença não poupa ninguém, sejam homens ou mulheres, crianças ou idosos, pessoas da cidade ou do campo, empresários ou trabalhadores, pobres ou ricos, enfim, ninguém estaria livre de contrair a doença ou até mesmo de falecer em decorrência de sua letalidade, pois todos seríamos iguais se a morte por Covid-19 chegar.
Mas, aceite-se ou não, a Covid-19 não nos põe em pé de igualdade uns com os outros mesmo quanto à morte. A pandemia de Convid-19 está escancarando, mais nitidamente, sim, as diferenças sociais absurdas existentes entre as vidas de cada um de nós, de cada trabalhador e de seus familiares.
A começar pelo isolamento de prevenção, seja ele do tipo que for, distanciamento social ampliado, distanciamento social seletivo, isolamento parcial, contenção comunitária, quarentena comunitária (lockdown), percebem-se que as diferenças entre as famílias são abismais e na maioria das vezes com consequências fatais para uns e normalidade para outros.
Para alguns o isolamento preventivo é quase férias remuneradas com a sugestão de se ficar em casa. Para outros ficar em casa significa continuar a trabalhar em regime home office e continuar a perceber seus salários; alguns com alguma redução de salários ou não. Porém, para grande parte dos trabalhadores e seus familiares as dificuldades e os riscos de morrer são apenas aumentados. Para milhões, simplesmente, não há sequer a opção de se ficar em casa uma vez que sendo integrantes das atividades essenciais continuam trabalhando como anteriormente. Outros estão em casa não por opção, mas se obrigaram a permanecer em casa porque perderam o emprego, suas empresas faliram, não têm mais para quem prestar seus serviços, ou estão doentes, são idosos, ou pertencem aos mais diversos grupos vulneráveis.
Embora as diferenças sociais estejam gritando e bem alto neste momento, é claro, a morte continua sendo incerta para todos como sempre o foi.
Assim, nem todos têm o direito de parar, de ficar em casa com tranquilidade, para evitar o alastramento da contaminação. Sem trabalho, ou melhor, sem dinheiro proveniente do trabalho não há comida na mesa.
Não é história ou ficção, muitos não vão morrer unicamente em decorrência das complicações clínicas geradas pela Covid-19, mas poderão morrer de fome, pela desnutrição, de desespero, por conflitos beligerantes, pelo medo, por outras doenças, pela falta de assistência, enfim por causas outras tão ou mais graves que a provocada pela Covid-19.
Para os mais pobres, essencialmente; para os miseráveis, principalmente; para os invisíveis, para aqueles que viviam sem se saber que existiam, necessariamente; as consequências da crise gerada pela pandemia de Covid-19 serão mortais. Todavia, o que é mais assustador é que o número dos invisíveis vai aumentar consideravelmente. Exagero? Bem se sabe que não.
Sim, a fome no mundo vai aumentar (e muito) e as mortes pela fome se multiplicarão muito mais rapidamente. Os governos tentarão auxiliar os desempregados, os trabalhadores informais, as empresas quebradas, os micros e pequenos empreendedores, até mesmo as grandes organizações poderão ser ajudadas em um primeiro momento. A ajuda estatal poderá ser de três meses, de um semestre, ou de até um ano, talvez. Mas, as dificuldades pós Covid-19 promoverão alterações que vão atingir sobremaneira os já invisíveis ou aqueles que se tornarão invisíveis seja nos países mais pobres ou mesmo nos mais ricos.
Os novos famintos vão ser acrescentados aos famintos invisíveis existentes em todo canto do mundo. Pessoas que passam fome em decorrência de outras doenças, das guerras, das quebras financeiras, da corrupção, enfim de inúmeros outros problemas, se juntarão aos milhões de famintos gerados pela pandemia de Covid-19. O número de invisíveis que passam fome, que morrem pela falta de ter o que comer, aumentará (de forma, também, imperceptível). Num mundo insensível parece ser inevitável semelhante atrocidade.
Lembre-se, a propósito, como um ser humano morre de forme. Ou seja, após alguns poucos dias sem comer, a pessoa terá fortes dores no estômago e seu corpo começará sistematicamente a queimar todas as reservas de gordura para transformá-las em energia.
Ao mesmo tempo que vão sendo esgotadas as reservas de gordura o fígado começará a produzir toxinas maléficas para o organismo, as dores se intensificam e o corpo começará a sofrer desnutrição. Iniciar-se-á acentuado emagrecimento, com hipotensão e perda de eletrólitos. Dores mais intensas vão sendo geradas uma vez que os músculos serão, também, consumidos para produzir energia.
Surgem arritmias cardíacas, redução das proteínas e todos os órgãos vão diminuindo de tamanho. Com a falta de vitaminas e minerais o sistema imunológico fica enfraquecido e a pessoa poderá contrair qualquer tipo de doença.
No final a pessoa enfrentará extrema fadiga e apatia até atingir o torpor, tecidos e órgãos passam a ser metabolizados até que morra por parada cardíaca.
A morte pela fome é considerada como uma das mortes mais cruéis e dolorosas; entretanto na fase terminal não há mais fome, não existirá mais dor. O corpo moribundo permanece em transe prolongado esperando apenas o fim sem ter como se recuperar. Estima-se que processo de morte pela fome possa durar de 50 a 60 dias dependendo da pessoa.
Há de se ressaltar, é claro, que a Covid-19 vai gerar a morte de muitos independentemente da fome e que a permanência em casa como tentativa de evitar o maior contágio não elimina, também, a possibilidade de morte pelo coronavírus gerador da Covid-19.
É claro que a pandemia de Covid-19 está dando à humanidade um gigantesco experimento que atinge a todos. Pensar diferente seria ingenuidade. Todos, em dada medida, estão ou serão afetados.
Entretanto, existem centenas de milhares de informais que não estão recebendo ajuda alguma, o número de empresas (de distintos portes) que estão quebrando aumenta a cada dia, milhões de desempregados estão sendo gerados, o aumento das populações dos presídios é inevitável. Vários outros problemas somam conjunto de possibilidades que poderão gerar novas populações de invisíveis que passarão fome ou que, possivelmente, podem falecer por não ter o que comer.
Mais grave, porém, é o fato que estas novas populações de pessoas que passarão fome aumentarão muito rapidamente não sendo este aumento gradual e silencioso como foi o daquela população invisível que já passa fome ou morre pela falta de alimentação adequada. As populações dos atuais miseráveis invisíveis foram formadas de forma crônica e sistematicamente ao passar dos anos. Talvez, por isto mesmo sejam invisíveis, não são percebidos, chegando a não incomodar a normalidade do seguir da realidade.
Quando as populações daqueles que não tiverem como se sustentar aumentar em grandes quantidades e em período muito curto sem a possibilidades de se manterem por tempo indeterminado inúmeros problemas sociais poderão se agravar em abundância sem logística suficiente ou mesmo possível para resolvê-los.
Se aquele dinheiro recebido antes da pandemia, por pequeno que fosse, fruto do trabalho informal, por exemplo, venda de balas nos semáforos, não existir mais, então não haverá como comprar a comida de todos os dias, não se pagará a conta da luz e da água mensalmente, não haverá dinheiro para a condução, enfim não haverá mais como viver. Um caos generalizado pode sim acontecer dependo do número de cidadãos que passem a engrossar estas populações de invisíveis para as economias.
Os assaltos ou roubos podem aumentar. Os crimes dos mais diversos poderão ser praticados. Aproveitadores vão encontrar oportunidades de lesar mais as pessoas, insumos poderão faltar ou produtos deixarão de ser produzidos ou serão roubados ou desviados. De tudo poderá faltar e de pouco adiantará o dinheiro que eventualmente algumas classes tenha guardado. O significado de desordem e caos poderá ser posto na prática.
Até mesmos aqueles que eram os mais ricos em um passado recente poderão engrossar o exército daqueles que passarão fome. Exagero? Não, em absoluto.
Sempre é oportuno lembrar que é de todo fácil fazer isolamento com a dispensa e a geladira cheiras e com a possibilidade de prenchê-las a cada momento utilizando o serviço delivere do que ficar em casa porque não tem como se sustentar por ter perdido o emprego ou por não mais poder exercer o trabalho informal que lhe garantia o pão de cada dia.
A interrupção ou modificação das atividades econômicas nos mais diversos níveis está aumentando silenciosamente o número de miseráveis que irão morrer por falta de ter o que comer. Acredite, não é ficção ou romance.
A Covid-19 vai passar e independentemente das soluções econômicas que vão surgir, necessariamente, vai deixar, de forma permanente, mais miseráveis invisíveis que por não terem o que comer todos os dias vão morrer de fome.
Mas, seja como for, a vida seguirá seu curso incorporando a Covid-19 como mais uma doença pertencente à humanidade, as economias se ajustarão e seguirão em frente como é natural. Sempre é assim. A humanidade segue em frente.
Mas, se antes da pandemia de Covid-19, a cada 4 segundos uma pessoa morria de fome no mundo, pós pandemia de Covid-19 este número vai mudar, vai aumentar, certamente, se, contudo, ações efetivas não forem tomadas para descobrir quem são estes miseráveis invisíveis que continuam a morrer de fome mesmo em países desenvolvidos e ricos.
Ressalte-se que quando se faz menção aos invisíveis está se referenciando àquelas pessoas que sequer estão nas classificações de linha de pobreza universalmente admitidas. Eles apenas não estão lá, mas por exclusão são contabilizados nos tratamentos estatísticos. São percentuais sem rostos, sem feições.
Tanto os ricos, ou aqueles acima da linha de pobreza, quanto os abaixo da linha de pobreza, até aqueles em extrema pobreza, as vezes tropeçam nestas pessoas (os invisíveis) sem dar a menor importância na maioria das vezes. Alguns destes seres humanos habitam as calçadas das cidades, outros nem mesmo esta sorte possuem. Todavia, cada corpo ignorado daqueles cidadãos tem uma história, muitas vezes de dor e sofrimento.
Entende-se, porém, a despeito dos exercícios de reflexão envolvidos, que a morte de um cidadão pela falta de ter o que comer é um problema de soberania nacional, é um problema de saúde pública, é um problema de governabilidade, é um problema financeiro, é um problema político, é um problema jurídico, é um problema de falta de humanidade, é um problema de falta de dignidade, é um problema de hombridade. Seja de qual natureza for a questão a mesma é apenas absurda, não pode continuar a persistir sem solução ou sem sequer se pensar nas soluções.
Não são somente as crises geradas pelas epidemias ou pandemias, a vulnerabilidade econômica, as crises orçamentárias, a falta de proteção social, a indiferença entre as pessoas, o subdesenvolvimento dos países, os modelos tributários falhos existentes, as diferenças sociais cada vez mais crescentes, ou quaisquer outras questões mensuráveis que permitem a existência de um único ser humano morrer por não ter o que comer. Parece haver outra intencionalidade envolvida, mesmo que, possivelmente, inconsciente.
Mas, se faz urgente identificar os invisíveis, aqueles que não existem formalmente na sociedade, aqueles que não têm sequer documentos, que não possuem Carteira de Identidade ou CPF, aqueles que sofrem sem que seus gritos possam ser ouvidos.
Difícil é a correspondente identificação destes invisíveis, dirão alguns. Mas, na verdade, não é tão difícil assim. Escolha-se um ponto de partida qualquer, como por exemplo, aquele menino maltrapilho que se oferece para limpar o para-brisa dos automóveis nos sinaleiros. Ele mostrará a quantos invisíveis está associado. Poder-se-á descobrir que seus pais são doentes ou são pessoas com deficiências e não podem trabalhar, que possui vários irmãos menores que como ele vão para as ruas em busca de migalhas, que moram embaixo da ponte ou em algum outro lugar impróprio para humanos habitar, que naquele lugar moram seus avós idosos abandonados à sorte, que lá comem ratos ou outros bichos, que não têm água, que não possuem lugar adequado para fazer as necessidades fisiológicas, que lá morrem um pouco a cada dia.
E assim, poderá ser possível começar a estabelecer as formas urgentes de como incluir estes cidadãos na sociedade descobrindo suas necessidades, suas dificuldades, suas dores. Claro, esta é apenas uma possibilidade de identificação daqueles que são invisíveis. Existem outras muitas maneiras. Certamente seres inteligentes não apenas haverão de identificar os invisíveis em questão como, também, serão capazes de estabelecer como reintegrá-los dignamente na sociedade. Porque deixar estes seres humanos invisíveis abandonados para morrerem é um crime na mais elementar das avaliações.
É suposto que a Covid-19 vai matar ainda muitas pessoas. Mas, será inevitavelmente controlada pela humanidade como outras tantas doenças o foram. Outras muitas doenças, certamente, vão surgir e matar muito mais seres humanos. Todavia, se no mundo não forem tomadas as necessárias e urgentes providências agora a quantidade de pessoas mortas pela falta de ter o que comer ou pela falta de condições básicas para se viver será ainda maior depois da Covid-19 e o número dos invisíveis poderá ser em quantidade tal que os homens das sociedades civilizadas, em futuro não tão distante, poderão passar a se matar por restos de comida para apenas tentar sobreviver.
*Carlos Magno Corrêa Dias é conselheiro efetivo do Conselho das Mil Cabeças da CNTU.
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