A conservadora universidade brasileira segue caminhos do ultrapassado
Carlos Magno Corrêa DiasConselheiro da CNTU aponta em artigo as dificuldades da universidade brasileira em ser promotora da inovação e de permitir a plena integração entre as ciências e as tecnologias com os meios empresarial e industrial.
Com frequência se fala que a universidade no Brasil é tradicional, que é conservadora ao extremo, que tanto na graduação quanto na pós-graduação tudo gira em torno de disciplinas que não se interligam entre si, que os departamentos se isolam em suas áreas e não possibilitam a integração ou a interdisciplinaridade, que os conhecimentos são tratados isolados uns dos outros, que existe um total distanciamento com os problemas do mundo real e que não é inovadora.
São em crises tais quais as geradas por pandemias do tipo da Covid-19 ou por outros episódios mundiais determinantes que se percebem mais nitidamente as características precedentemente enunciadas confirmando o quanto as universidades brasileiras não conseguem acompanhar o desenvolvimento tecnológico dos principais centros de estudo do mundo. São, entretanto, as universidades públicas brasileiras aquelas que além de serem em muito obsoletas há muito deixaram de cumprir o papel precípuo da universidade quanto a gerar intensivamente conhecimento útil para o desenvolvimento do país e para o bem das pessoas.
Na verdade, invariavelmente, a universidade no Brasil (seja pública ou privada, com poucas exceções) não se insere no mundo real prático, não se ocupando fortemente de resolver problemas da sociedade. Sequer se permite, normalmente, trocar ideias, conhecimentos ou soluções com o meio no qual está inserida como é usual no resto do mundo desenvolvido.
A universidade brasileira (em geral) com a desculpa de ser convencional, de preservar tradicionalmente seu legado, se mantém como o porto seguro das ciências e é quase que totalmente teórica e não consegue dialogar com os problemas do dia a dia. Estranhamente, a universidade brasileira tem muita dificuldade para promover aproximações entre tecnologias e ciências no sentido de se construir um corpo relacional e simbiótico objetivando a produção de conhecimento útil (necessário) que objetive sempre o bem da sociedade.
A maioria das universidades no Brasil não se permitindo avançar para além dos seus ‘muros protetores” não consegue interagir mais intensamente com as tecnologias (que compõem o mundo das possibilidades) e não tem conseguido entender adequadamente o mundo das necessidades, o mundo real, onde dia após dia os problemas se avolumam e necessitam de soluções urgentes e sempre inovadoras.
No mundo integrado, globalizado, atual chega a ser incompreensível o fato da maioria das universidades no Brasil que não se permitam a criação de empresas em seu interior ou que não tenham como prática usual contribuir com empresas externas para o avanço do progresso e do desenvolvimento.
Sem valor agregado a produtos, serviços ou processos não há inovação, pois não é possível dissociar inovação da geração de riqueza. A universidade brasileira continuando com seu posicionamento convencional (retrógrado, afirme-se) de não se associar às empresas para, também, gerar os meios que possam produzir capital, jamais conseguirá ser inovadora.
Categoricamente, a universidade no Brasil não apenas não é inovadora como, também, impede a inovação ao não se permitir participar das empresas ou das indústrias, ou ao se distanciar do mercado, ou antes, enquanto não enxergar que ela própria pode gerar empresas em sua estrutura interna objetivando ganhar dinheiro ou produzir riquezas.
Incompreensivelmente, impera no interior das universidades brasileiras (públicas, mais intensamente) um certo ranço que gerar dinheiro dentro da universidade é algo “criminoso” ou é uma “heresia”, um “pecado”. Mesmo existindo há quase duas décadas legislação no Brasil sobre inovação que objetiva estimular parcerias entre instituições acadêmicas e o setor produtivo brasileiro poucas foram as associações estabelecidas entre as universidades brasileiras e o mundo empresarial ou industrial.
O Decreto número 9.283, de 07/02/2018, considerado fundamental para aproximações entre as instituições científicas e tecnológicas do setor produtivo, regulamentou a Lei 10.973, de 02/12/2004, a Lei 13.243, de 11/01/2016, o artigo 24, parágrafo 3º, e o artigo 32, parágrafo 7º, da Lei 8.666, de 21/06/1993, o artigo 1º da Lei 8.010, de 29/03/1990, e o artigo 2º, caput, inciso I, alínea "g", da Lei 8.032, de 12/04/1990, alterando, também, o Decreto 6.759, de 05/02/2009, para aprimorar as medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo.
Saliente-se, a propósito, que a Lei 13.243/2016 ficou conhecida como o Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação do Brasil enquanto a Lei 10.973/2004 foi considerada a Lei de Inovação Tecnológica do Brasil que estabeleceu as diretrizes gerais de incentivos e apoio à inovação prevendo a criação de incentivos fiscais à inovação tecnológica.
Certamente, muitos foram os motivos para a universidade não acessar as legislações sobre inovação já criadas no país, mas, talvez, a razão mais contundente, seja que a universidade brasileira acredita, realmente, que ela própria, em conjunção apenas com as ciências, pode promover todo desenvolvimento e progresso necessário mantendo-se distante das tecnologias e do meio de produção. O que por si só já é um erro há muito evidenciado. De outro lado, a universidade brasileira parece ainda acreditar, também, que a ela cabe guardar o conhecimento científico sem, entretanto, compartilhá-lo com as empresas em geral ou com as indústrias em particular.
A falta intensificada da transferência de conhecimentos entre a indústria e a universidade favorece, em muitas das vezes, a duplicação de esforços impedindo-se a possibilidade da produção de novos produtos, processos ou metodologias que melhor garantiriam a geração de inovação eficaz, eficiente ou transformadora. O distanciamento recorrente entre a universidade e a indústria é determinante, também, para a manutenção da estagnação na própria universidade, pois é limitante e contribui, e em muito, para o cercear a competitividade do país.
É necessário pontuar que pesquisa, desenvolvimento e inovação não podem caminhar separados haja vista que a união dos mesmos constitui simbiose obrigatória para o progresso e para a evolução. Pouco ou nada adianta produzir pesquisa sem o desenvolvimento dos resultados que se obteve. Produzir pesquisa para os resultados ficarem arquivados em bibliotecas acadêmicas não tem o menor sentido em um país que padece de soluções em praticamente todas as áreas a todo momento. Pesquisa sem desenvolvimento significa inviabilizar a inovação.
Outro grande inviabilizar de se manter relações de cooperação entre as ciências e as tecnologias por parte das universidades é a existência de exagerada departamentalização no interior da universidade brasileira que não consegue se libertar da “síndrome das caixinhas”, da infinita divisão do conhecimento em simples disciplinas separadas e que não se relacionam nunca.
Indo contra concepções como interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, compartilhamento, cooperação, dentre outras associadas, a universitária se vale da autonomia universitária para criar seus cursos e sua estrutura sem priorizar a integração entre suas partes. A universidade brasileira é por demais fragmentada, subdividida, inviabilizando na prática as múltiplas possibilidades de relacionamentos entre os diversos conhecimentos.
Parece até absurdo, mas em muitas das vezes uma mesma disciplina é ofertada em repetição em vários cursos diferentes de distintos departamentos mesmo sabendo-se previamente deste tipo de replicação.
Assim, os departamentos ficam inchados com elevado número de disciplinas, de professores e de alunos. Todavia, semelhante característica parece ser proposital haja vista que o poder de um dado departamento tem sido medido exatamente pela maior ou menor carga horária que se detém dentro da estrutura da universidade.
A extrema departamentalização do conhecimento no interior da universidade brasileira induz à realização de pesquisas para se descobrir, na maioria das vezes, aquilo que já existe ao invés de criar soluções inolvidáveis para problemas reais sem solução e que dificultam a vida das pessoas nas comunidades.
Absurdamente, então, enquanto perdurar este posicionamento delimitador, restritivo, a universidade não vai inovar e não inovando não vai conseguir conversar com a indústria, com o meio empresarial ou com meio de produção. Diante de uma única alternativa as possibilidades de solução ou são sempre restritas ou são as mesmas e ninguém investe naquilo que não é mais novidade.
Ficar especificando soluções existentes (convencionais) por meio de pesquisa seja teórica ou mesmo prática não promove a inovação. As principais universidades do mundo entenderam que não abrir suas portas para o mundo das possibilidades é tornar a universidade desnecessária. Compartilhar o conhecimento é o caminho a ser seguido.
Mesmo porque a geração de conhecimento não é primazia das ciências ou das universidades, pois as tecnologias ao determinarem soluções agregam, também, grandes quantidades de conhecimento próprio em muito diferenciado e que interessam muito mais diretamente para as pessoas no curto espaço de tempo. Mas, os conhecimentos gerados pelas tecnologias são dinâmicos e são muito rapidamente substituídos por outros ainda mais inovadores em períodos de tempo geralmente muito menores. O conhecimento das ciências é frequentemente arquivado nas bibliotecas e lá, em muitas das vezes, é esquecido; o que dificulta a correspondente proliferação e extensões.
Aquilo que é usual hoje no mundo das tecnologias poderá não ter valor agregado algum amanhã se novos produtos forem construídos com maiores possibilidades no final do dia de hoje, pois as tecnologias perseguem constantemente a inovação e aqueles que estão dispostos a investir em novos produtos que possuam cada vez mais maior valor agregado.
Veja-se, por exemplo, a evolução dos dispositivos de armazenamento de dados que, simplesmente, não param de surpreender e que mudam radialmente de tempos em tempos obrigando os consumidores a se adequarem sob pena de apenas deixarem de existir. Em 1971 surgiram os primeiros disquetes (“floppy-disks”) que foram sendo substituídos gradativamente pelo disco rígido, CD, CD-R, CD-RW, DVD, HD DVD, SSD, cartão de memória, “pen drive” (USB), memória RAM, compartilhamento de arquivos, disco de “blu-ray”, armazenamento distribuído, rede local, disco virtual, “cloud computing” e SAN (ambiente de armazenamento em rede).
Outro impedimento para a universidade brasileira fazer inovação, decorrente, também, de seu enclausuramento e da falta de fortes relações com o meio produtivo, é que a universidade faz pouca (ou, em vários casos, nenhuma) extensão. E sem extensão não se conhece a realidade da comunidade onde está inserida a universidade. Não se percebendo os problemas do país, não se sabe quais são as dificuldades que a nação apresenta.
A universidade brasileira não conhecendo o mundo real por intermédio da extensão não consegue realizar pesquisa relevante para o desenvolvimento e progresso do Brasil e gera resultados que não interessam ao mercado e à indústria, pois carecem de inovação, não possuem valor agregado factível, mensurável. Assim, a universidade gera publicações e mais publicações sem interesse algum para os investidores e estes, em contrapartida, não percebendo inovação na produção da universidade não investem na universidade. Mas, sem pesados investimentos, não há como inovar. Cai-se, portanto, em um ciclo contraditório que apenas mantém a universidade distante das pessoas.
Ainda em relação à produção de pesquisa relevante para o desenvolvimento do país há de se observar que a universidade brasileira parece não conhecer ou tem medo da “ciência aberta” (“open science”), pois dela se afasta insistentemente e não a desenvolve na maioria das vezes.
A ciência aberta faz referência a um modelo de prática científica que, em compartilhamento com a digitalização do mundo, objetiva disponibilizar informações em rede de forma oposta à pesquisa que ocorre (em geral) na universidade convencional (principalmente, na universidade brasileira) que guarda seus poucos resultados a “sete chaves”. A ciência aberta pretende a participação de todos que possam contribuir para a resolução de problemas sem restrições.
Um exemplo da ciência aberta comum é o “acesso aberto” a textos de artigos que são disponibilizados publicamente na internet por intermédio dos próprios autores em seus websites ou em repositórios institucionais seja por tempo determinado ou indefinidamente. Há de observar que embora a concepção de acesso aberto já exista há algumas décadas ainda encontra forte resistência do comércio editorial em geral e da universidade em particular.
A ciência aberta, em oposição à ciência clássica desenvolvida há séculos na academia, pretende a geração de pesquisa e dos resultados obtidos para serem compartilhados abertamente. A ciência aberta está centrada na colaboração entre os pesquisadores para a democratização do conhecimento científico e tecnológico por meio do acesso irrestrito.
Das considerações precedentes resulta afirmar, então, que existem alguns caminhos já estabelecidos para que a universidade brasileira deixe o estigma de conservadora, no sentido de ultrapassada, para se integrar à realidade do compartilhamento e da inovação. Todavia, pelo que se observa, em particular, desde março de 2020, mais intensamente do que em períodos passados, a manutenção do atual paradigma que orienta a universidade brasileira parece que muito dificilmente será deixado de lado. Pelo contrário, os elevados muros que cercam as universidades brasileiras continuarão a ser aumentados ainda mais (e, também, as poucas pontes existentes poderão ser derrubadas).
Mas, alerte-se cientistas, pesquisadores, estudiosos, não podem permanecer reclusos (escravizados) nas delimitações de departamentos das universidades. A universidade necessita conversar com o mundo, com as empresas e ser, também, empresa, empreendedora, para produzir produtos, serviços ou processos inovadores para o bem da sociedade. No mundo 4.0 a ciência não pode ser propriedade exclusiva da academia e, nem tão pouco, a tecnologia pode ser desenvolvida apenas na indústria.
Assim, todo conhecimento científico ou tecnológico que se tem deve ser compartilhado para gerar mais e mais conhecimento. Não tem sentido guardar conhecimento para obrigar a repetição de estudos ou pesquisas para se chegar aos mesmos resultados. Universidade e indústria devem garantir que ciência e tecnologia se mantenham em simbiose constante para gerar conhecimento renovável e cada mais abrangente. Ciência e tecnologia em associação efetiva, em cooperação, devem conduzir à inovação para a produção de conhecimento útil para a melhoria de vida das pessoas.
*Carlos Magno Corrêa Dias é professor, conselheiro efetivo do Conselho das Mil Cabeças da CNTU, conselheiro sênior do Conselho Paranaense de Cidadania Empresarial (CPCE) do Sistema Fiep, líder/fundador do Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Tecnológico e Científico em Engenharia e na Indústria (GPDTCEI), líder/fundador do Grupo de Pesquisa em Lógica e Filosofia da Ciência (GPLFC), personalidade empreendedora do Estado do Paraná pela Assembleia Legislativa do Estado do Paraná (Alep).
**Ilustração: Maringoni.
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